1. Introdução
No âmbito das decisões econômicas, os leilões de arte constituem um campo singular para o exame de vieses comportamentais devido à sua estrutura não padronizada, alto valor simbólico e abundância de dados históricos. Uma pesquisa empírica de grande escala conduzida por Graddy et al. (2022) apresenta evidências robustas sobre a presença dos efeitos de âncora e aversão à perda nas decisões de precificação em leilões. Tais efeitos, oriundos da teoria da perspectiva desenvolvida por Kahneman e Tversky, revelam-se particularmente relevantes quando analisados à luz da dinâmica entre estimativas anteriores, valores subjetivos e tempo de posse.
A análise de mais de 6.400 pares de revenda de pinturas entre 1875 e 2011 permite uma compreensão aprofundada dos fatores que distorcem as expectativas racionais de precificação. A extensão temporal da amostra permite captar nuances como mudanças de geração de colecionadores, alterações de regime econômico e variações na liquidez do mercado de arte. Tal abordagem contrasta com a maioria dos estudos comportamentais, muitas vezes restritos a ambientes experimentais controlados e com amostras limitadas.
Ademais, o estudo transcende os limites descritivos ao propor um modelo econométrico sofisticado que incorpora não apenas variáveis de qualidade observáveis, mas também estimativas hedônicas de preço, diferenças temporais e fatores não observados, utilizando regressões não lineares para capturar a assimetria entre ganhos e perdas esperadas. É precisamente essa estrutura metodológica que confere à pesquisa um caráter inédito no campo da economia da arte.
2. Leilões de Arte e Vieses Comportamentais
2.1 Estrutura dos Leilões de Arte
Leilões de arte operam tradicionalmente sob o formato inglês, de lances ascendentes, conduzidos por casas como Sotheby’s e Christie’s. Antes do leilão, são publicadas estimativas de preço mínimo e máximo, e definido um preço de reserva sigiloso, acordado com o vendedor. Quando os lances não alcançam esse valor, a obra é considerada “bought-in” e retorna ao mercado primário ou é mantida pelo colecionador. Segundo Ashenfelter e Graddy (2011), a taxa de obras "bought-in" varia entre 20% e 30%, o que impacta a dinâmica da base de dados.
Esse contexto institucional impõe variáveis que se tornam determinantes para a análise dos vieses. A influência das estimativas de preço, a intermediação dos especialistas e a presença de garantias de venda moldam a estrutura de incentivos dos agentes econômicos. Assim, mesmo antes do início do leilão, os participantes estão expostos a referências que atuam como ancoragens cognitivas.
O uso de garantias de venda por terceiros é outro fator relevante. Ao assegurar um preço mínimo ao vendedor, esses acordos alteram a percepção de risco e introduzem incentivos adicionais que potencializam os vieses comportamentais. A compreensão da arquitetura institucional é, portanto, fundamental para interpretar os resultados empíricos do estudo.
2.2 O Efeito Âncora
O efeito âncora, conforme descrito por Tversky e Kahneman (1974), manifesta-se quando decisões são influenciadas por um valor de referência anterior, mesmo irrelevante. Nos leilões de arte, essa referência pode ser o preço de venda anterior, a estimativa do leiloeiro ou mesmo o valor pago em uma transação privada. A literatura posterior ampliou esse conceito para mercados financeiros, consumo e comportamento imobilário.
No caso específico da arte, obras que foram vendidas em "mercado quente" tendem a manter valores elevados mesmo em contextos posteriores desfavoráveis. Isso indica que a ancoragem é mais forte quando o tempo entre vendas é curto, o que corrobora a ideia de saliência temporal. Ao utilizar dados de revendas, o estudo consegue isolar o efeito da ancoragem ao controlar por qualidade não observada por meio de modelos hedônicos.
Outro ponto relevante é a diferença entre ancoragem racional e heurística. A primeira refere-se à aprendizagem baseada em informação relevante, enquanto a segunda corresponde ao uso de referências inadequadas. O estudo distingue esses efeitos ao usar o desvio entre o preço anterior e o preço estimado como proxy de irracionalidade, uma abordagem inovadora e estatisticamente robusta.
2.3 Aversão à Perda
A aversão à perda, pilar da Teoria da Perspectiva, implica que indivíduos sentem mais intensamente as perdas do que os ganhos de mesmo valor. Esse comportamento foi empiricamente validado em diversas áreas, como mercado imobiliário, apostas e mercado acionário. No caso da arte, esse viés se manifesta quando colecionadores evitam vender obras abaixo do valor pago, mesmo com evidências de desvalorização.
A contribuição do estudo está em mensurar esse viés por meio da assimetria entre ganhos e perdas na diferença entre preço anterior e preço estimado. A regressão não linear empregada incorpora um termo específico para a aversão à perda, permitindo diferenciar sua magnitude em relação à ancoragem. Os resultados indicam que a perda esperada gera uma sobreavaliação do preço final, mesmo quando não justificada pelos fundamentos do mercado.
Outro aspecto notável é a interação entre tempo de posse e intensidade da aversão à perda, corroborando o efeito de dotação. Quanto mais tempo um indivíduo detém a obra, maior o valor subjetivo atribuído a ela, o que aumenta sua resistência à venda por preço inferior. Esse fenômeno tem implicações relevantes para a liquidez do mercado secundário e para as estratégias de precificação dos leiloeiros.
3. Testes de Ancoragem e Aversão à Perda
Para testar empiricamente os efeitos de ancoragem e aversão à perda, os autores desenvolveram um modelo econométrico que considera logaritmos de preços de venda (e estimativas) e os compara com preços anteriores e estimados. A especificação inclui termos que capturam diferenças entre preços passados e os valores previstos por um modelo hedônico, o que permite isolar o impacto da ancoragem de forma separada de variações racionais atribuídas à qualidade da obra ou mudanças macroeconômicas.
O termo de ancoragem é representado pela diferença entre o preço anterior e o preço atual previsto pelo modelo. Um coeficiente significativo nesse termo indica que o preço passado exerce influência sobre o valor atual de forma independente da evolução dos fundamentos. Já o termo de aversão à perda é modelado de forma não linear, utilizando a parte positiva da diferença entre o preço anterior e o valor estimado atual. Essa assimetria é fundamental para identificar se perdas potenciais impactam de maneira distinta os resultados de precificação.
A inovação metodológica do estudo reside na capacidade de estimar simultaneamente os dois efeitos em um único modelo, controlando ainda por fatores não observáveis (como qualidade subjetiva da obra) por meio do uso de múltiplas vendas da mesma obra. Esse tipo de análise é raro na literatura e representa um avanço importante na modelagem econômica da arte como ativo financeiro, fornecendo evidências empíricas mais sólidas que os tradicionais experimentos laboratoriais.
4. Dados e Estatísticas Descritivas
A base de dados utilizada no estudo foi compilada a partir de registros de leilões das casas Sotheby’s e Christie’s, abrangendo o período de 1875 a 2011. Foram consideradas exclusivamente pinturas das categorias impressionista e moderna, com observações provenientes majoritariamente dos mercados de Nova York e Londres. Cada observação corresponde a um par de revenda da mesma obra, totalizando 6.411 pares distintos, o que representa uma amostra inédita em escala e profundidade.
Os dados incluem preços de compra e venda, estimativas de valor máximo e mínimo publicadas nos catálogos, informações sobre o artista (nacionalidade, data de nascimento e morte), e características da obra (dimensões, médio, assinatura, datação). Todas as transações foram convertidas para dólares norte-americanos utilizando câmbios históricos, permitindo uma comparação consistente ao longo de mais de um século.
As estatísticas descritivas revelam que o valor médio das obras vendidas é de US$ 751 mil, enquanto o valor de aquisição médio é de US$ 289 mil, com um período de posse médio de 16,4 anos. Tais valores indicam que a amostra representa a elite do mercado de arte, concentrando obras de alto valor. A distribuição dos dados também mostra que há uma densidade maior de revendas após 1940, coincidindo com o crescimento do mercado secundário internacional.
5. Regressões Hedônicas
Para estimar os preços previstos (contrafactuais), foi utilizado um modelo de regressão hedônica, no qual o logaritmo do preço da obra foi regressado sobre variáveis como altura, largura, assinatura, datação, tipo de médio e efeitos fixos por artista e por ano. Com isso, foi possível gerar predições que isolam as características físicas e contextuais da obra no momento da venda.
A regressão revelou que obras assinadas e datadas apresentam valores significativamente superiores, confirmando a importância da autenticação e da historicidade no processo de valoração. Aumentos nas dimensões também contribuem positivamente para o preço, refletindo preferências por obras maiores. Os efeitos fixos por artista mostraram-se estatisticamente significativos, evidenciando que a reputação individual é um fator determinante.
O preço previsto por essa regressão serve como baseline para os testes de ancoragem e aversão à perda. Ao comparar o preço realizado com o valor previsto, torna-se possível mensurar desvios de racionalidade. A série temporal dos preços estimados também permite observar bolhas especulativas, como a da década de 1980, relacionada à entrada de capital japonês no mercado.
6. Resultados Empíricos
Os resultados empíricos confirmam a presença estatisticamente significativa tanto da ancoragem quanto da aversão à perda. No modelo não linear, estima-se que uma perda esperada de 10% aumenta o preço de venda em 6,2%, sendo 0,9% atribuível à ancoragem e 5,3% à aversão à perda. Isso indica uma forte assimetria comportamental: perdas esperadas provocam reações mais intensas que ganhos esperados.
A divisão da amostra entre obras com tempo de posse inferior e superior a cinco anos mostra diferenças significativas. A ancoragem é mais intensa nas revendas rápidas, refletindo a saliência do preço anterior. Já a aversão à perda é mais pronunciada em obras mantidas por longos períodos, evidência do efeito de dotação e do aumento do valor subjetivo ao longo do tempo.
As estimativas também indicam que os preços finais convergem para as estimativas preço estabelecidas pelas casas de leilão, sugerindo que essas estimativas servem como nova âncora. O modelo confirma os achados de Genesove e Mayer (2001) no mercado imobiliário, agora aplicados de forma pioneira ao mercado de arte com uma base de dados significativamente mais ampla.
7. Previsão de Retornos Futuros
Um dos objetivos do estudo foi verificar se os efeitos comportamentais poderiam ser utilizados para prever retornos futuros. Para isso, foram analisadas obras que passaram por pelo menos três vendas, permitindo observar se desvios de ancoragem ou aversão à perda na segunda venda influenciam a rentabilidade da terceira.
Os resultados mostram que nem a ancoragem nem a aversão à perda são bons preditores de retornos excessivos. Ou seja, mesmo conhecendo os vieses, não é possível lucrar de forma consistente com base neles. Por outro lado, o estudo encontrou uma forte correlação negativa entre preços pagos acima do valor previsto e os retornos subsequentes. Isso sugere que pagar caro demais em relação ao valor fundamental reduz a rentabilidade futura.
Assim, os dados apontam para uma recomendação prática: evitar obras claramente sobrevalorizadas e priorizar aquelas adquiridas com desconto em relação ao valor previsto pode aumentar as chances de retorno positivo. No entanto, isso está relacionado à eficácia da estimação hedônica e não à exploração direta dos vieses comportamentais.
8. Conclusão
Este estudo fornece evidências empíricas robustas de que os vieses comportamentais de ancoragem e aversão à perda têm um papel determinante na precificação de obras de arte em leilões. Utilizando um modelo econômico rigoroso e uma base de dados histórica extensa, os autores demonstram que esses efeitos são sistemáticos e quantificáveis, especialmente em função do tempo de posse e da saliência do preço anterior.
Contudo, apesar de sua influência nos preços, tais vieses não permitem a previsão de retornos acima da média de forma consistente. Isso sugere que o mercado de arte, embora sujeito a irracionalidades, também incorpora mecanismos corretivos que limitam a arbitragem comportamental. Tais resultados têm implicações relevantes para colecionadores, investidores e gestores de acervos.
Finalmente, a pesquisa fortalece o entendimento do mercado de arte como um campo legítimo para a aplicação de modelos de economia comportamental, ao mesmo tempo em que destaca a necessidade de metodologias rigorosas e dados de alta qualidade. É um marco na literatura e oferece subsídios valiosos para decisões de investimento, precificação e formulação de políticas culturais.
Referências
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Kahneman, D., & Tversky, A. (1979). Prospect Theory: An Analysis of Decision under Risk. Econometrica.
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Tversky, A., & Kahneman, D. (1974). Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases. Science.
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Thaler, R. (1980). Toward a Positive Theory of Consumer Choice. Journal of Economic Behavior & Organization.
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Genesove, D., & Mayer, C. (2001). Loss Aversion and Seller Behavior: Evidence from the Housing Market. The Quarterly Journal of Economics.
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Graddy, K., Loewenstein, L., Mei, J., Moses, M., & Pownall, R. (2022). Empirical Evidence of Anchoring and Loss Aversion from Art Auctions. SSRN. https://ssrn.com/abstract=4159039