Em novembro de 2017, um leilão da Christie’s em Nova York quebrou todos os recordes: Salvator Mundi, uma pintura atribuída a Leonardo da Vinci, foi arrematada por estrondosos US$ 450,3 milhões . Menos de vinte pinturas de da Vinci existem no mundo, e aquela era a única em mãos privadas – uma oportunidade literalmente única de possuir um Leonardo . Por trás do espanto com a cifra está um fato simples e conhecido dos colecionadores: na arte, escassez gera prestígio e valor. Quanto mais raro o objeto, maior seu apelo e sua aura de importância. Uma obra única ou extremamente limitada carrega consigo não apenas a beleza ou mensagem que contém, mas também o status conferido por sua exclusividade.

Essa relação entre raridade e reconhecimento atravessa a história da arte e ganha novos contornos no efervescente mercado contemporâneo – do qual o Brasil faz parte com cada vez mais vigor. Em 2023, o mercado brasileiro de artes visuais movimentou cerca de R$ 2,9 bilhões, um crescimento de 21% em relação ao ano anterior . Feiras como a SP-Arte florescem e jovens colecionadores se engajam com entusiasmo, impulsionados pelas redes sociais e por questões identitárias, ampliando o alcance da arte contemporânea nacional . No entanto, mesmo com a profissionalização das galerias e a democratização parcial do acesso digital, o jogo do prestígio no mundo da arte ainda segue regras antigas: pertence àqueles que dominam a narrativa da escassez, da qualidade superior e da distinção cultural.

Neste artigo exploraremos a relação entre escassez e prestígio no campo artístico, unindo anedotas reveladoras e análise teórica. A perspectiva do economista da arte Hans Abbing, especialmente o capítulo 7 de Why Are Artists Poor?, servirá de base conceitual para iluminar as dinâmicas excepcionais desse mercado. Ao longo do texto, casos reais de artistas, exposições e coleções serão entrelaçados com crítica cultural, mapeando como a ideia do “raro” alimenta tanto o glamour quanto as contradições do mundo da arte contemporânea – no Brasil e no exterior.

 

O mito do “sagrado” e a realidade econômica da arte

 

No universo das artes, prevalece um mito cultivado há pelo menos dois séculos: o de que Arte e Dinheiro pertencem a esferas separadas. “Na arte, a qualidade parece ser mais importante que o preço”, escreve Hans Abbing, observando como artistas e gestores culturais agem como se considerações mercantis não se aplicassem ao fazer artístico . Essa crença, quase um dogma, pinta a arte como um campo sagrado, imune às leis mundanas da economia – um “domínio do dom” em que falar de dinheiro seria profanar a pureza da criação. Abbing nota, porém, que ao “adotarem esse adágio, artistas e diretores negam a economia” – uma negação que sustenta a aura mística da arte, mas que esconde uma realidade bem diferente.

A verdade é que a economia se infiltra nas artes de modo inevitável. Custos de produção, de formação e de divulgação sempre importaram, e “produzir arte tornou-se cada vez mais caro”, tornando impossível ignorar fatores financeiros . Por trás do véu romântico, a lógica da oferta e demanda atua: obras e carreiras se desenvolvem num ecossistema onde recursos são escassos e escolhas econômicas precisam ser feitas. Abbing argumenta que a própria ideia de que “nenhum custo é alto demais quando se busca a alta qualidade” – ilustrada por casos como óperas encenadas com produções caríssimas – reflete não uma ausência de economia, mas sim uma economia excepcional onde o alto gasto é justificado pelo prestígio artístico gerado . Em outras palavras, o investimento extraordinário em arte é permitido (e até esperado) porque sinaliza excelência e raridade, reforçando o status quase sagrado da obra ou evento.

Essa dinâmica ajuda a explicar um aparente paradoxo: por que tantos artistas aceitam viver com baixos rendimentos e, ainda assim, não falta jovens dispostos a ingressar na carreira artística. A resposta está nas “moedas” alternativas que a arte oferece. Estudos apontam que artistas tendem a receber “mais que a média em satisfação privada e outras formas de renda não monetária, como status” . Abbing sugere que, de certo modo, os artistas trocam dinheiro por prestígio – privilegiam recompensas simbólicas em vez de remuneração financeira. O resultado é uma situação em que muitos criadores toleram a incerteza econômica pessoal em troca da promessa de reconhecimento e liberdade criativa. O status artístico funciona como um prêmio de consolação (às vezes, o principal prêmio) que compensa parcialmente a falta de ganhos materiais .

No entanto, essa mesma lógica alimenta um cenário cruel de excesso de oferta de aspirantes a artista e poucos “vencedores”. Desde meados do século XX, formou-se um verdadeiro “exército de artistas supérfluos” sustentados por empregos alternativos, cônjuges e subsídios, enquanto apenas uma minoria atinge o estrelato . A aura quase religiosa que cerca as artes incentiva legiões a persistir, mesmo diante de perspectivas econômicas sombrias. Muitos jovens bem formados ingressam no circuito cheios de altas expectativas – “o brilho e a mística das artes desinformam os artistas”, alerta Abbing . Uns poucos irão ascender ao topo; outros acabarão saindo do campo, em geral tarde demais para recomeçar em outra carreira, carregando uma decepção profunda. Essa decepção, nota Abbing, é existencial, pois toca a vocação e o sentido de vida do artista . No campo artístico, portanto, prestígio e escassez estão entrelaçados de forma ambígua: a escassez de reconhecimento (só alguns chegam lá) é justamente o que torna o prestígio tão cobiçado – e tão potentemente mobilizador de esforços e sacrifícios.

 

Escassez como valor: quando a raridade define a arte

 

A ideia de que a raridade aumenta o valor de uma obra não é mero capricho do mercado atual – trata-se de um princípio de longa data. O economista William Grampp, por exemplo, sugeriu certa vez que, se Rembrandt tivesse pintado ainda menos autorretratos, o valor tanto de mercado quanto estético desses quadros seria mais alto do que já é . É uma hipótese provocativa: indica que até nossa percepção de qualidade artística (“valor estético”) pode ser inflada pela escassez. Quando algo é único ou muito escasso, tendemos a enxergá-lo como ainda mais especial – um processo social de construção de valor. Em outras palavras, não é só que obras raras custam caro; nós frequentemente as consideramos intrinsecamente melhores ou mais importantes porque são raras.

Exemplos práticos desse fenômeno abundam. O caso do Salvator Mundi citado na introdução é emblemático: além de sua qualidade artística debatida, foi a condição de “último Da Vinci em mãos privadas” que o tornou um Santo Graal para bilionários – um bem totalmente insubstituível. Como notou a imprensa financeira, havia ali um componente claro de “valor de escassez”: menos de vinte pinturas de Leonardo sobrevivem, e a oportunidade de arrematar uma delas é literalmente única em uma geração . Em contraste, o até então recordista Picasso Les Femmes d’Alger (vendido por US$ 179 milhões) fazia parte de uma série de 15 – ou seja, mesmo sendo uma obra-prima, não possuía o mesmo grau de singularidade de um Da Vinci . O resultado? O Leonardo – ainda que restaurado e de autenticidade contestada – atingiu um preço 2,5 vezes maior. A raridade extrema funciona como um multiplicador de valor, catalisando disputas e elevando expectativas.

No mercado contemporâneo, a escassez muitas vezes é cultivada ativamente como estratégia. Galerias e artistas aprendem a dosar a oferta: quantas obras liberar, em que ritmo, para quais colecionadores. Diferente de indústrias tradicionais, a maioria das obras de arte não é “reproduzível em massa” – elas são peças únicas ou edições limitadas, e essa qualidade intrínseca “limita a oferta de obras disponíveis para compra”, explica o galerista Ricardo Fernandes . Mesmo quando há possibilidade técnica de multiplicação (como fotografias ou gravuras), recorre-se ao artifício de edições limitadas para preservar a sensação de exclusividade. Esse controle da oferta alimenta o desejo: quanto mais difícil obter, mais cobiçado se torna o objeto – um comportamento amplamente confirmado pela psicologia do consumo, conhecida como princípio da escassez.

Um episódio recente envolvendo o provocativo artista Banksy ilustra até que ponto a criação da raridade pode agregar prestígio (e valor financeiro) a uma obra. Em 2018, logo após seu famoso quadro Girl with Balloon ser vendido em leilão por cerca de US$ 1,4 milhão, um mecanismo secreto no quadro entrou em ação e shhhrrriipp – metade da tela passou por um triturador embutido na moldura, destruindo parcialmente a obra diante do público atônito. O que poderia ter sido visto como vandalismo ou perda irreparável rapidamente se transmutou em mito: o evento, registrado ao vivo, tornou-se parte integrante da obra, rebatizada de Love is in the Bin. O resultado? Em 2021, a peça semi-destruída foi revendida por US$ 25,4 milhões, 18 vezes o valor da versão intacta . A ironia é deliciosa: Banksy tentou criticar a mercantilização fazendo a obra “desaparecer”; em vez disso, criou instantaneamente um artefato ainda mais raro (a única pintura que se auto-triturou em leilão) e, portanto, ainda mais valorizado pelo mercado. Como observou um crítico, o público não lamentou a destruição em si, mas imediatamente passou a discutir como aquele ato afetaria o valor do “ativo” . A performance subversiva se converteu em golpe de mestre de marketing: ao encenar a autodestruição em um espetáculo viral, Banksy aumentou o prestígio da obra ao expor – e simultaneamente reforçar – o fetichismo do mercado por narrativas de exclusividade e escassez.

Esses casos destacam que, no circuito da arte, a percepção de valor é altamente dependente de fatores sociais: histórias peculiares, contexto de circulação e, fundamentalmente, disponibilidade limitada. O economista Magnus Resch resume: “O valor [de uma obra] é amplamente guiado pela percepção, baseado em marca, escassez e redes internas, mais do que na qualidade intrínseca ou utilidade” . Ou seja, importam menos os materiais ou o trabalho objetivos investidos em uma peça e mais o prestígio da assinatura, quão difícil é tê-la, e quem a endossa. Essa lógica vale tanto para mestres consagrados quanto para artistas emergentes tentando se posicionar: muitas vezes, a construção de uma carreira de sucesso envolve gerir cuidadosamente onde e com que frequência exibir suas obras, de modo a “não banalizar” a presença delas no circuito. Um certo grau de inacessibilidade pode ser benéfico para cultivar desejo e admiração.

 

Prestígio como moeda: colecionadores, museus e status social

 

Se para os artistas a escassez pode significar sacrifício em prol de reconhecimento, para os colecionadores e patronos ela é uma verdadeira moeda de status. Obras de arte funcionam como bens posicionais – coisas cujo valor reside não apenas em suas qualidades estéticas, mas no que simbolizam sobre quem as possui. Conforme a teoria do economista Fred Hirsch, bens posicionais “são valorizados principalmente porque são raros e sinalizam uma posição social elevada” . Possuir um quadro disputado em leilão, ostentar uma escultura de edição única na sala de estar, ter o nome associado a doações para museus – tudo isso comunica ao mundo um privilégio de acesso restrito. É a lógica do “quem pode, pode”: no topo da pirâmide social, o consumo de arte sempre foi uma linguagem de poder e distinção.

Historicamente, isso não é novidade. Basta lembrar dos Medicis na Renascença, que comissionavam obras-primas não só por amor à arte, mas para esculpir narrativas de poder cultural em Florença . Ou dos barões do final do século XIX e início do XX – banqueiros e industriais que colecionavam mestres europeus para afirmar seu status (JP Morgan, Frick e companhia literalmente importaram a arte europeia para os EUA como quem ergue um monumento de legitimação social ). No Brasil, empresários e políticos também compreenderam o valor do mecenato: da criação do MASP por Assis Chateaubriand em 1947 – angariando obras de prestígio para projetar São Paulo no cenário internacional – até as coleções corporativas atuais, há uma tradição de aliar investimento em arte à construção de uma imagem de sofisticação e influência.

No presente, a relação entre colecionismo e prestígio fica evidente em eventos sociais e nas próprias instituições de arte. Os vernissages de galerias ou as previews VIP de feiras tornaram-se espaços de sociabilidade exclusiva, onde poderosos disputam quem arremata a peça mais comentada. Ter acesso antecipado a uma obra “hot” do momento, antes que ela seja leiloada publicamente, é sinal de que o colecionador integra um círculo privilegiado – aquele em que galeristas e advisors compartilham oportunidades sob medida. Não por acaso, insider networks (redes de relação internas) foram citadas por Resch ao lado de escassez e marca como pilares do valor percebido . A confiança para transitar nesses meios fechados é, em si, um ativo intangível que distingue o colecionador sério do comprador ocasional.

As instituições culturais também desempenham papel-chave nesse ecossistema de prestígio. Museus, bienais e fundações conferem um selo de legitimidade às obras e artistas, funcionando como árbitros do gosto – mas essa validação costuma ser fruto de sinergia com os interesses de colecionadores e doadores. É um "secreto de Polichinelo" no meio artístico que muitos patronos de museus promovem aquisições de artistas que colecionam, sabendo que tal endosso institucional fará o valor de suas obras disparar no mercado. Não é cinismo, é um ciclo inerente: “quando um museu adquire uma peça, seu valor de mercado aumenta; essa aquisição, por sua vez, eleva o prestígio tanto do artista quanto do colecionador associado” . Trata-se de uma relação simbiótica – o museu confere respeitabilidade e “imortaliza” a obra no cânone, enquanto o colecionador fornece o capital (seja doando a obra, seja financiando a compra) e reforça sua imagem de mecenas esclarecido. Em certos casos, o nome do patrono até fica gravado na plaqueta ao lado do quadro na parede, eternizando a associação entre aquele nome e a cultura.

O prestígio, assim, circula como uma espécie de moeda social: ele é acumulado, investido e trocado. Um colecionador que constrói uma coleção coesa e a exibe publicamente – seja abrindo um museu privado, seja emprestando para exposições importantes – ganha capital simbólico que pode ser convertido em influência. No Brasil, exemplos marcantes incluem iniciativas como o Instituto Inhotim, em Minas Gerais, onde um grande empresário construiu um paraíso museológico particular, aberto ao público, e em torno dele uma reputação de visionário cultural (antes de enfrentar problemas financeiros e legais). Grandes eventos como a Bienal de São Paulo também dependem historicamente do apoio de elites que, ao patrociná-los, colhem não apenas benefícios fiscais, mas prestígio por serem associadas à “causa da arte”. Dar à arte significa prestígio aumentado, aponta Abbing – é mais uma recompensa para o doador . Governos e empresas sabem disso e usam o patrocínio cultural como estratégia de soft power: ao investirem em exposições, museus ou restauros, “compartilham da alta estima de que a arte goza”, associando sua imagem à aura positiva das artes . Na arena global onde nações competem por influência, o “estrume do prestígio” foi em parte deslocado do militar para o cultural – ter uma cena artística vibrante, museus de ponta, artistas premiados, tudo isso projeta poder brando e status internacional.

Para os artistas emergentes e experientes navegando nesse meio, entender o prestígio como moeda é crucial. A carreira artística não se faz isoladamente no ateliê, mas em rede: requer alinhar-se a bons galeristas (gatekeepers que controlam quem entra no “clube” dos valorizados ), participar de exposições certas, entrar em coleções estratégicas. Há um componente de jogo de xadrez na construção de uma trajetória – em que cada mostra num museu respeitado, cada prêmio ou aquisição por colecionador de renome, é um movimento que eleva a cotação do “ativo” artístico no mercado simbólico. Como descreve Don Thompson em The $12 Million Stuffed Shark, fatores como fama, narrativa (story) e exclusividade deliberada são combustíveis para inflacionar preços na arte contemporânea . Jeff Koons e Damien Hirst, ícones do hipermercado da arte, exemplificam bem isso: suas obras alcançam cifras astronômicas não apenas pela estética kitsch-ou-hipnotizante, mas porque foram cercadas pelas galerias certas, produzidas em edições limitadas cuidadosamente calibradas e impulsionadas por um buzz incessante no circuito internacional . Em suma, o prestígio é manufaturado tanto quanto a obra – ele se constrói ativamente, muitas vezes pela manutenção de uma certa escassez (seja de acesso, seja de quantidade de obras) combinada à narrativa adequada.

 

O mercado de arte contemporânea: dinâmicas globais e desafios locais

 

O panorama contemporâneo do mercado de arte é marcado pela tensão entre forças democratizantes (novos públicos, tecnologia, globalização) e a permanência de estruturas elitistas baseadas em escassez e prestígio. No Brasil, essa tensão se faz presente em um cenário em transformação. Como mencionado, o setor de artes visuais nacional teve crescimento significativo pós-pandemia, indicando um público comprador em expansão e maior visibilidade internacional para artistas brasileiros . Galerias brasileiras, outrora focadas apenas no eixo Rio-São Paulo, agora participam de feiras como Art Basel e Frieze, abrindo filiais no exterior e alcançando colecionadores globais . Há um amadurecimento estrutural: pesquisa recente mostra galerias mais profissionalizadas, equipes multidisciplinares cuidando não só de curadoria mas de carreira, comunicação e inserção institucional dos artistas . A digitalização – sites bem estruturados, viewing rooms, leilões online – também tornou o acesso à informação mais ágil, “democratizando” parcialmente o mercado .

Contudo, os gargalos tradicionais persistem. O mercado de arte contemporânea permanece um dos mais inacessíveis para o grande público, operando como um clube fechado onde apenas iniciados entendem plenamente as regras e os valores envolvidos. Os preços de obras de artistas consagrados estão fora do alcance da maioria, e mesmo obras de entrada (até R$ 50 mil, no contexto brasileiro) ainda representam 59% do faturamento das galerias – sinal de que o grosso das vendas ocorre em faixas relativamente altas . Além disso, a concentração geográfica e social do mercado é evidente: apesar do surgimento de novos colecionadores jovens, a elite econômica tradicional ainda responde pela maior parte das aquisições, e o circuito principal continua orbitando em torno de poucos pólos urbanos. Em 2023, cerca de 77% das vendas das galerias brasileiras foram para compradores locais (nacionais) , indicando que, embora a arte brasileira ganhe força no exterior, o sustento do mercado interno depende de uma base reduzida de colecionadores abastados e engajados.

Nesse contexto, a lógica da escassez e do prestígio continua a ditar muitas escolhas. Por exemplo, artistas brasileiros que alcançam projeção internacional – como Beatriz Milhazes ou Adriana Varejão – veem o preço de suas obras disparar, impulsionado pela validação externa e pela oferta limitada de peças disponíveis dessas autoras. Estudos de mercado citados em 2020 já apontavam que artistas brasileiras desse calibre triplicaram seus valores de mercado na década anterior, tamanha a demanda crescente frente a uma produção controlada e validada globalmente (feiras, bienais, aquisições por museus estrangeiros) . Ao mesmo tempo, nomes emergentes lutam para entrar nesse círculo virtuoso: sem o respaldo de uma grande galeria ou de colecionadores influentes, sua obra permanece “em abundância” (isto é, facilmente disponível) e, por isso, não desperta o frisson de exclusividade que atrai os holofotes. Muitos acabam caindo na categoria de “promessas perdidas” – talentos que produziram bastante, mas sem o reconhecimento institucional e a escassez desejável, suas obras não se valorizam e eles podem ser preteridos na história canônica.

Um exemplo ilustrativo ocorreu durante a pandemia de 2020-21, quando o acesso físico às artes foi restringido. Projetos de exposições online e vendas virtuais proliferaram, teoricamente ampliando o acesso do público e de novos compradores. No entanto, mesmo no meio digital, rapidamente se instaurou uma hierarquia: viewing rooms exclusivas por convite, leilões online com cadastros filtrados, NFTs vendidos em edições únicas a preços milionários pagos por colecionadores de criptomoedas. A tão aclamada “democratização” via tecnologia logo esbarrou na recriação de escassez artificial – seja pela limitação intencional de edições digitais (como nos NFTs únicos) ou pela curadoria que destaca apenas alguns artistas num mar infinito de conteúdo online . Em outras palavras, as novas plataformas acabaram por confirmar a tese de que o valor da arte, mesmo num cenário de amplo acesso, “depende das percepções dos outros” e de mecanismos de exclusão/inclusão que simulam a raridade .

No Brasil, um fenômeno interessante pós-pandemia foi a ampliação do interesse de novos públicos jovens, conectados às redes e engajados em causas sociais, pela arte contemporânea . Esses colecionadores iniciantes costumam buscar obras que reflitam preocupações atuais (identidade, diversidade, política), mais do que status tradicional. Ainda assim, mesmo essa nova leva rapidamente se depara com a realidade de que as obras mais destacadas ou os artistas mais comentados seguem alcançando patamares de preço e escassez que os tiram do alcance. Surgiram iniciativas de clubes de colecionadores adquirindo coletivamente obras, ou plataformas de fracionamento de propriedade de obras de arte via tokens digitais, numa tentativa de mitigar a barreira de entrada – mas essas inovações ainda engatinham e representam uma fração minúscula do mercado.

Em suma, no contexto global e local, o prestígio artístico continua sendo um bem raro. O mercado de arte contemporânea, apesar de todas as transformações, resiste como uma economia de escassez artificial e distinção: poucos artistas se tornam verdadeiramente “blue-chip”; poucas obras atingem visibilidade mundial; poucos colecionadores ditam as tendências através de suas compras e doações. Ao mesmo tempo, as margens desse sistema se expandem – novos atores encontram brechas e nichos (arte digital, cenas regionais, arte colaborativa ou ativista) que questionam a hierarquia estabelecida. Resta saber até que ponto essas iniciativas conseguirão subverter a lógica dominante ou se acabarão cooptadas por ela, tornando-se apenas mais um degrau no jogo do prestígio.

 

Conclusão

 

A relação entre escassez e prestígio no mundo da arte revela um equilíbrio delicado entre mística cultural e realidade econômica. De um lado, a crença de que a arte habita um patamar acima do vil metal alimenta uma aura de nobreza – artistas aceitam ganhos magros em nome de um suposto chamado superior, colecionadores afirmam amar arte “pelo amor” enquanto desfrutam do status que ela confere. Por outro lado, vimos como a economia real nunca esteve ausente: ela atua nos bastidores sob a forma de raridade, exclusividade e construção de valor simbólico. O prestígio, essa forma etérea de capital, segue regras quase mercantis – pode ser “acumulado, investido e trocado”, como destacamos, e depende crucialmente de manter certas coisas fora do alcance comum.

Hans Abbing e outros teóricos nos alertam para o lado sombrio dessa dinâmica. A glorificação da escassez – seja de dinheiro (no mito do artista abnegado) seja de acesso (no fetiche do objeto único) – pode servir para legitimar desigualdades e sofrimento no campo artístico. Muitos artistas aceitam a autoprivação esperando alcançar a consagração que poucos obtêm; muitos talentos ficam pelo caminho, vítimas de um sistema que demanda um “estoque de perdedores” para aumentar as chances de uns poucos vencedores brilharem . Do ponto de vista cultural, a escassez também tem seus efeitos colaterais: quantas obras magníficas permanecem invisíveis porque não tiveram o “selo” correto? Quantos movimentos artísticos inteiros foram subestimados por não se encaixarem no circuito de prestígio vigente? A história da arte frequentemente é escrita em função dessas dinâmicas de consagração – e revisão posteriores mostram que qualidade e reconhecimento nem sempre andaram juntos no momento certo.

Ainda assim, não há como negar o fascínio inerente ao raro e ao excepcional. Colecionadores experientes e artistas emergentes, nosso público imaginário aqui, sabem na pele que parte da magia da arte está nessa equação entre o irrepetível e o desejado. A vibração de estar diante de algo único – seja a pintura secular resgatada de um porão europeu, seja a instalação vanguardista que só poucos vivenciaram – produz uma espécie de frisson que é em si um valor. O mercado de arte nada mais faz do que codificar esse frisson em cifras e reputações.

Para navegar esse mundo com olhar crítico, é preciso ter consciência dessa dialética entre escassez e prestígio. Reconhecer, por exemplo, quando o discurso da pureza desinteressada da arte está mascarando relações de poder e dinheiro; ou, inversamente, perceber quando um lance financeiro astronômico esconde uma genuína operação de consagração cultural.

Vimos aqui histórias de como a falta de obras e de artistas “suficientemente bons”, de acesso, pode ser artificialmente criada ou exaltada para produzir valor. E vimos também que esse valor é real em seus efeitos: constroi carreiras, alimenta mitos, movimenta fortunas e inspira gerações.

Ao final, fica a provocação: será possível um equilíbrio mais justo nesse jogo? Ou a excepcionalidade da economia da arte, com sua aura de sagrado, sua recusa em funcionar como um mercado comum, é justamente o que a torna irresistivelmente humana, cheia de contradições, brilhantismo e desigualdade?

Enquanto a resposta não vem, colecionadores continuarão a buscar aquela peça rara que falta em sua coleção, artistas continuarão a mirar a posteridade mesmo a custo de penúria, e o mundo da arte seguirá oscilando entre a generosidade e a crueldade, entre o sublime e o mercantil. Porque, em última instância, no mercado de arte como na alta sociedade, nada é tão comum quanto o desejo de ser único.

Referências (seleção):

 

 

  •  

    Hans Abbing – Why Are Artists Poor? (2002)  .

  • Reuters – “Da Vinci record vividly depicts scarcity value” (Ben Kellerman & Kate Duguid, 16/11/2017)  .

  • The Washington Post – “Banksy… The shredded version just went for $25.4 million” (Jonathan Edwards, 15/10/2021)  .

  • Artsy – “How Does the Economy Impact the Art Market?” (Olivia Gavoyannis, Jul 2025)  .

  • ARTDEX – “Follow the Money: How Economics Shapes What We Call ‘Great Art’” (2023)  .

  • Terra – “Arte brasileira cresce e ganha força no exterior” (22/05/2025)  .

  • Forbes Brasil – “Arte Brasileira na Maior Pesquisa do Setor” (03/04/2025)  .

  • Conceito de bens posicionais (Fred Hirsch) .