A Pintura como Termômetro da História
Por Paulo Varella
1. Quando o pincel registra o que os livros não contam
Há uma linha tênue entre o gesto do artista e o espírito de uma época(zeitgeist). A tinta sobre a tela pode não apenas representar a realidade, mas também senti-la. E, mais importante, transmitir esse sentimento por gerações. Ao longo de séculos, pinturas se acumularam nas paredes de igrejas, palácios, museus e coleções privadas, e ali permaneceram, silenciosas, testemunhas privilegiadas de tempos turbulentos e prósperos, de revoluções e reformas, de fome e exuberância.
Mas e se fosse possível medir esse silêncio? Quantificar o que Van Gogh sentia ao pintar “Os Comedores de Batata”? Ou identificar os ciclos de medo, esperança ou contentamento expressos nas imagens coletivas de uma determinada década? Essa foi a ambição do paper “State of the Art: Economic Development Through the Lens of Paintings”, assinado por Clément Gorin, Stephan Heblich e Yanos Zylberberg, e publicado pelo National Bureau of Economic Research em junho de 2025.
O estudo não é uma crítica de arte. Tampouco pretende decifrar o estilo ou a técnica. É, antes de tudo, uma ousadia metodológica: os autores analisaram mais de 630 mil pinturas, datadas de 1400 até os dias atuais, com o apoio de redes neurais e inteligência artificial. O objetivo? Extrair, por meio de algoritmos de aprendizado profundo, os sinais emocionais embutidos em cada obra — tristeza, medo, alegria, raiva, contentamento, nojo, entre outras — e conectá-los com os grandes ciclos da história econômica.
E é aí que o projeto se torna instigante: ao tratar a arte como dado, os autores colocam em xeque a noção de que só estatísticas frias podem narrar o desenvolvimento de uma civilização. Há nas pinceladas e composições algo que escapa aos arquivos oficiais — uma vibração emocional coletiva. A estética se torna evidência.
2. O código emocional da pintura
Para realizar tal façanha, os autores recorreram a fontes amplas e abertas: Google Arts & Culture, WikiArt e Wikidata forneceram um oceano de imagens digitais de obras produzidas por mais de 29 mil artistas. Com base em um conjunto de 79.860 pinturas previamente anotadas por humanos — que atribuíram a cada uma delas uma emoção dominante, como “tristeza” ou “excitação” —, os pesquisadores treinaram um algoritmo para reconhecer padrões visuais associados a emoções específicas.
A arquitetura da inteligência artificial é sofisticada. Uma rede neural convolucional, parecida com as que hoje leem radiografias ou analisam o tráfego de cidades, aprendeu a identificar nuances de composição, textura, cor e forma para inferir o “tom emocional” de cada pintura. Mas não se trata de uma leitura literal: o modelo não precisa de um rosto chorando para detectar tristeza — ele identifica, por exemplo, uma paleta sombria, um vazio de espaço, um gesto curvo. E faz isso com um grau de precisão que surpreende até os mais céticos.
Os resultados são expressos em vetores probabilísticos: cada pintura recebe uma distribuição entre nove emoções, refletindo a percepção média de um observador comum. Em outras palavras, a IA simula a resposta emocional de um espectador hipotético, treinado pela sensibilidade coletiva acumulada nos dados. O próximo passo foi agregar essas emoções por tempo e lugar — Paris em 1789, Florença em 1520, Londres em 1910 — e identificar padrões agregados, controlando variáveis como o gênero artístico, o estilo, a biografia do artista e seu ciclo de produção.
3. Linhas do tempo emocionais
As emoções, dizem os filósofos estóicos, são sombras que os acontecimentos projetam sobre a alma. No trabalho dos economistas Clément Gorin, Stephan Heblich e Yanos Zylberberg, elas se transformam em séries temporais — gráficos de contentamento e medo, curvas de tristeza, picos de raiva e vales de entusiasmo, tudo medido a partir de imagens.
Ao aplicar o modelo de inteligência artificial sobre centenas de milhares de pinturas, os autores puderam construir um índice emocional da história ocidental. O que ele revela é notável: a frequência de emoções específicas nas obras flutua de acordo com os ciclos econômicos e políticos. Durante a Renascença, por exemplo, predominam sinais de excitação e admiração, associados à redescoberta da ciência, da perspectiva e da figura humana. Já no período das Guerras Napoleônicas, emerge o medo — não só nos temas bélicos, mas também nas composições religiosas e domésticas.
No auge da Belle Époque, em Paris, multiplicam-se cenas de contentamento e prazer urbano, como nas festas de Renoir ou nos bailes de Toulouse-Lautrec. Contrastando com esse espírito, o expressionismo alemão das décadas seguintes mergulha na angústia, reflexo direto das incertezas que antecedem a Primeira Guerra e depois da hiperinflação da República de Weimar.
Em resumo: a arte reage. Não apenas aos grandes eventos, mas às tensões difusas, às ansiedades que se instalam no tecido cotidiano e acabam se insinuando nos gestos dos artistas.
4. Quando uma cidade chora sozinha
Mais do que a média das emoções, os autores observaram outro dado revelador: a divergência emocional entre artistas de um mesmo tempo e lugar. Em períodos e regiões de alta desigualdade social, as obras expressam sentimentos muito distintos entre si. Há quem pinte jardins ensolarados, enquanto outro registra a miséria nas ruas ao lado. Esse descompasso emocional, chamado no estudo de “índice de desacordo”, revela algo profundo: o aumento da fragmentação social.
Paris durante a Revolução Francesa, Londres na Revolução Industrial, Berlim no entreguerras — em todos esses momentos, há um aumento nas diferenças emocionais entre as obras produzidas localmente. A elite celebra a ciência ou a velocidade das máquinas; o operariado expressa, ainda que indiretamente, uma inquietação cinza.
Essa medida de dispersão afetiva entre artistas é um termômetro sofisticado da desigualdade. E um alerta: quando uma sociedade pinta em muitas direções, talvez esteja prestes a rachar.
5. Comércio, vapor e rádio: o efeito das estruturas invisíveis
Não apenas guerras ou crises produzem emoções coletivas. O estudo mostra como mudanças estruturais — muitas vezes invisíveis no cotidiano — alteram o tom emocional da produção artística.
A introdução do navio a vapor, por exemplo, coincide com um aumento de entusiasmo e admiração nas obras feitas em portos comerciais. O rádio, especialmente quando utilizado para propaganda política, cria climas de medo e tensão — o que aparece refletido em pinturas expressionistas ou nacionalistas da primeira metade do século XX.
A Revolução Científica e o Iluminismo também deixam marcas. À medida que a religiosidade institucional declina na Europa e os centros urbanos se tornam pólos de conhecimento, há uma transição das emoções “awe” (reverência) para “contentment” (tranquilidade). Menos milagres, mais método. Menos transcendência, mais progresso.
Esse mapeamento conecta, com elegância, o mundo das ideias ao mundo das imagens. Mostra que transformações que costumamos estudar pela estatística — como a urbanização ou a inovação tecnológica — também podem ser lidas nos gestos pictóricos.
6. O PIB sentimental
O grande argumento do artigo é, em essência, epistemológico: a arte pode ser uma fonte legítima de conhecimento econômico.
Tradicionalmente, medimos o desenvolvimento por indicadores como o PIB per capita, a expectativa de vida ou os níveis de alfabetização. Mas essas métricas captam apenas a superfície — produção, consumo, acesso. O que elas não revelam é o que as pessoas sentiam ao viver essas transformações.
Ao recuperar as emoções expressas nas obras de arte como indicadores — subjetivos, sim, mas sistemáticos — os autores propõem um PIB emocional. Um índice que mede o bem-estar sentido, e não apenas o bem-estar medido. Uma espécie de “economia da sensibilidade histórica”.
A proposta é ambiciosa, mas tem lastro. Estudos contemporâneos já mostram que emoções afetam decisões de consumo, voto, confiança no sistema financeiro. Logo, entender o pano de fundo emocional de uma sociedade nos ajuda a compreender por que certas escolhas coletivas foram feitas — e por que outras não foram sequer consideradas.
7. A subjetividade como dado
Críticos podem objetar: mas arte é subjetiva, como pode ser usada como dado? A resposta está na escala e no método.
Ao trabalhar com 630 mil pinturas, o estudo não busca interpretar uma obra isolada, mas sim capturar tendências agregadas. É o mesmo princípio das redes sociais: não é o post individual que revela o comportamento social, mas o conjunto deles.
Mais ainda: os pesquisadores testaram a coerência dos dados. Compararam as emoções atribuídas pelos algoritmos com descrições deixadas pelos próprios artistas — cartas, diários, manifestos. A convergência é notável. Também verificaram se as obras mais emocionais eram as mais valorizadas em leilões. Conclusão: não. O valor de mercado não distorce o tom emocional da produção artística.
Essa robustez metodológica transforma um material por excelência subjetivo; a arte em um novo tipo de dado histórico. Um dado que respira, que sofre, que celebra. Um dado que lembra que o desenvolvimento não é apenas uma linha ascendente no gráfico do crescimento, mas uma dança de sentimentos, esperanças e frustrações.
8. Pintar o invisível
Ao final, a beleza do estudo está em sua premissa ética: a arte não apenas decora a história — ela a explica. Pinturas, gravuras e desenhos não são acessórios ilustrativos dos livros de história, mas testemunhos afetivos da experiência humana.
Em tempos de dados em excesso e humanidade em falta, retornar às emoções — mesmo que lidas por uma máquina — pode ser um caminho para compreender com mais profundidade o que fomos, o que somos, e o que poderemos ser. A arte, afinal, sempre soube disso. Só nos faltava escutá-la com as ferramentas certas.
9. Fonte
https://www.nber.org/system/files/working_papers/w33976/w33976.pdf