No coração da contemporaneidade, onde a tecnologia se entrelaça com a existência humana, a arte enfrenta uma transformação radical. A dissertação A Influência Digital na Desmaterialização da Obra de Arte, de Ana Nunes Jorge emerge como um farol para compreender esse fenômeno. O estudo oferece uma análise profunda sobre como a tecnologia digital, especialmente os sistemas de realidade virtual (R.V.), desmantela as noções tradicionais de materialidade na arte, reconfigurando a relação entre o artista, a obra e o observador. Para artistas e conhecedores do mercado de arte, este trabalho é uma provocação: como a virtualização da experiência estética altera o valor, a circulação e a percepção da obra de arte no século XXI?
O Ponto de Partida: A Revolução Industrial e a Semente da Desmaterialização
A história da arte é indissociável da evolução tecnológica. A Revolução Industrial, com seu impacto avassalador na sociedade, marcou o início de uma nova percepção da realidade. A fotografia, surgida nesse contexto, foi mais do que uma invenção técnica; ela redefiniu a relação entre imagem e realidade. Ao capturar o instante com precisão mecânica, a fotografia desafiou a pintura tradicional, que até então dominava a representação do real. Como aponta Walter Benjamin, a reprodutibilidade técnica trouxe a perda da "aura" da obra de arte, um conceito que ressoa profundamente no mercado de arte contemporâneo, onde a unicidade e a autenticidade são moedas de valor.
A fotografia, com sua capacidade de multiplicar imagens e torná-las acessíveis, introduziu uma crise na representação. Artistas como os impressionistas e, mais tarde, os construtivistas, responderam a essa transformação. A pintura de Cézanne, por exemplo, abandonou a perspectiva geométrica tradicional, priorizando a luz e a percepção, enquanto os construtivistas russos, como Rodchenko, usaram a fotografia para manipular a realidade, criando imagens que desafiavam a noção de verdade absoluta. Essa ruptura inicial, como Jorge destaca, foi o primeiro passo rumo à desmaterialização, um processo que se intensificaria com a chegada do digital.
A Segunda Vanguarda e o Vídeo: Um Novo Paradigma
Nos anos 1960, a segunda vanguarda trouxe o vídeo, um meio que, segundo Jorge, dividiu espaço com a televisão e introduziu uma nova temporalidade à arte. Artistas como Nam June Paik e Bruce Nauman utilizaram o vídeo para explorar a interatividade e a imersão, transformando o observador em participante ativo. O vídeo, com sua capacidade de capturar o movimento em tempo real, ampliou a percepção da realidade, aproximando-a de uma experiência imersiva. Marshall McLuhan, citado no estudo, argumenta que o meio tecnológico molda a percepção humana, e o vídeo, nesse sentido, foi um marco na virtualização da experiência estética.
Para o mercado de arte, o vídeo trouxe desafios e oportunidades. Diferentemente de uma pintura ou escultura, cuja materialidade facilita a comercialização e a preservação, o vídeo é efêmero e depende de suportes tecnológicos. Como precificar uma obra que existe apenas em formato digital? Como garantir sua preservação em um mundo onde formatos tecnológicos tornam-se obsoletos rapidamente? Essas questões, que Jorge tangencia em sua análise, continuam a desafiar galerias, colecionadores e instituições.
O Digital e a Desmaterialização Completa
A transição para o digital, como Jorge explora na segunda parte de sua dissertação, marca o ápice da desmaterialização. Os sistemas digitais, com sua capacidade de traduzir a realidade em informação numérica, eliminam a necessidade de um suporte físico. A obra Osmose (1995), de Charlotte Davies, é apresentada como um paradigma dessa transformação. Em Osmose, uma instalação em realidade virtual, o participante é imerso em um ambiente digital que responde aos seus movimentos e respiração, criando uma experiência estética que transcende a materialidade. A obra não existe como objeto físico, mas como uma interação entre o observador e o sistema digital, mediada por interfaces que, segundo Lev Manovich, redefinem a relação entre o indivíduo e a tecnologia.
Essa desmaterialização tem implicações profundas para o mercado de arte. A ausência de um objeto tangível desafia as noções tradicionais de posse e valor. No mercado contemporâneo, obras digitais, como NFTs (tokens não fungíveis), têm tentado responder a essa questão, atribuindo autenticidade e exclusividade por meio de blockchain. Contudo, como Jorge sugere, a verdadeira revolução não está na posse, mas na experiência. Em Osmose, o participante não possui a obra; ele a vive. Essa mudança de paradigma levanta questões éticas e práticas: como o mercado pode monetizar experiências? Como os artistas podem garantir que suas obras digitais permaneçam acessíveis em um cenário de obsolescência tecnológica?
A Virtualização do Indivíduo e a Percepção da Realidade
Um dos pontos mais instigantes da dissertação de Jorge é a análise da virtualização do indivíduo. A tecnologia digital, especialmente em sistemas de R.V., não apenas desmaterializa a obra, mas também o observador. Em Osmose, o participante é traduzido em informação digital, tornando-se parte da obra. Essa fusão entre o humano e o digital, como Jorge argumenta, intensifica a percepção da realidade, borrando as fronteiras entre o real e o imaginário. Roy Ascott e Andrea Broeckmann, citados no estudo, sugerem que essa virtualização altera a própria noção de humano, transformando o corpo em um "hiper-corpo" que habita múltiplas dimensões.
Para artistas, essa transformação abre novas possibilidades criativas. A realidade virtual permite criar mundos imersivos que desafiam as convenções espaciais e temporais. Contudo, no mercado de arte, essa inovação traz desafios. Como avaliar uma obra que depende da interação do público? Como exibir uma instalação de R.V. em uma galeria tradicional? Museus como o MoMA e o Tate Modern já experimentam com exposições de arte digital, mas a infraestrutura necessária — desde equipamentos de realidade virtual até servidores robustos — exige investimentos significativos. Além disso, a efemeridade dessas obras levanta questões sobre sua longevidade e relevância cultural.
O Mercado de Arte na Era Digital
O mercado de arte, historicamente ancorado na materialidade, enfrenta uma reconfiguração. A dissertação de Jorge, embora focada na teoria estética, oferece insights valiosos para colecionadores, galeristas e artistas. A desmaterialização implica uma mudança no conceito de valor. Se a unicidade de uma pintura de Picasso reside em sua materialidade e história, o valor de uma obra digital como Osmose está na experiência que ela proporciona. Isso exige novas estratégias de comercialização, como a venda de direitos de acesso ou a criação de edições limitadas em formatos digitais.
Os NFTs, embora não mencionados diretamente no estudo de 2010, são uma extensão lógica das ideias de Jorge. Eles tentam resolver o problema da autenticidade no ambiente digital, mas também expõem as fragilidades do mercado de arte digital. A especulação em torno dos NFTs, que atingiu picos em 2021, revela a tensão entre a desmaterialização e a necessidade de atribuir valor econômico. Colecionadores devem considerar não apenas a estética, mas também a infraestrutura tecnológica e a sustentabilidade das obras digitais.
Além disso, a desmaterialização desafia as instituições tradicionais. Museus e galerias precisam adaptar seus espaços para acomodar instalações de realidade virtual, o que implica custos elevados e treinamento especializado. A curadoria de exposições digitais exige um novo vocabulário, que combine estética, tecnologia e interação. Artistas, por sua vez, devem dominar ferramentas digitais e entender o impacto da tecnologia em suas práticas criativas.
Osmose como Paradigma
Osmose é o fio condutor da dissertação de Jorge, e com razão. A obra encapsula a intersecção entre arte, tecnologia e percepção. Criada em 1995, Osmose utiliza sensores de movimento e respiração para criar um ambiente virtual que reage ao corpo do participante. A ausência de uma interface visível intensifica a imersão, fazendo com que o observador se sinta parte do mundo criado por Davies. Como Jorge argumenta, Osmose é a quintessência da obra imaterial: ela não pode ser possuída como um objeto, mas apenas vivida como uma experiência.
Para o mercado de arte, Osmose levanta questões cruciais. Como precificar uma obra que depende de uma infraestrutura tecnológica complexa? Como preservá-la em um contexto de rápida obsolescência? Essas questões ecoam nos debates atuais sobre a preservação de arte digital. Instituições como o Rhizome, que se dedica à preservação de arte digital, enfrentam o desafio de manter obras como Osmose acessíveis, seja por meio de emulação ou migração para novos formatos.
Implicações para Artistas e Colecionadores
Para artistas, a desmaterialização oferece liberdade criativa sem precedentes. A realidade virtual e as tecnologias digitais permitem explorar narrativas não lineares, espaços imersivos e interações dinâmicas. Contudo, essa liberdade vem com desafios técnicos e financeiros. Criar uma obra como Osmose exige equipes multidisciplinares, incluindo programadores, designers e engenheiros. Além disso, artistas devem considerar a acessibilidade de suas obras, garantindo que elas possam ser experimentadas por públicos diversos.
Para colecionadores, a desmaterialização exige uma mudança de mentalidade. A posse de uma obra digital não é equivalente à posse de uma pintura ou escultura. Colecionadores devem investir em plataformas que garantam a autenticidade e a preservação das obras, como blockchain ou arquivos digitais certificados. Além disso, a valorização de obras digitais depende menos de sua materialidade e mais de sua relevância cultural e estética, o que exige um olhar mais apurado e informado.
Conclusão: Um Novo Horizonte Estético
A dissertação de Ana Nunes Jorge é um convite à reflexão sobre o futuro da arte em um mundo cada vez mais digital. A desmaterialização, impulsionada pela tecnologia, não é apenas uma questão técnica, mas uma transformação profunda na forma como percebemos, criamos e valorizamos a arte. Para artistas, colecionadores e conhecedores do mercado, o desafio é abraçar essa mudança, adaptando-se às novas dinâmicas sem perder de vista o valor estético e cultural da arte.
A obra Osmose, com sua imersão radical, aponta para um futuro onde a arte não é mais um objeto, mas uma experiência compartilhada. No mercado de arte, isso significa repensar estratégias de comercialização, preservação e curadoria. A tecnologia, como Jorge demonstra, não é apenas um meio, mas um agente de transformação que redefine a própria essência da criação artística. Para aqueles que navegam o mercado de arte, o convite é claro: mergulhar de cabeça nesse novo horizonte, onde a realidade virtual e a desmaterialização abrem portas para experiências estéticas que transcendem o tangível.
Disponível em https://core.ac.uk/download/pdf/15563878.pdf,